
por Juremir Machado da Silva, colunista do Correio do Povo – RS.

por Juremir Machado da Silva, colunista do Correio do Povo – RS.

Recebi, ontem, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, por iniciativa do deputado Jeferson Fernandes (PT), a Medalha do Mérito Farroupilha, que dedico aos negros que morreram em Porongos, em 14 de novembro de 1844. Na cerimônia, pronunciei, contendo sinceramente a emoção, as singelas palavras que seguem.
No ótimo documentário “Santiago, Itália”, sobre os perseguidos pelo golpe de Augusto Pinochet que pularam o muro da embaixada italiana na capital chilena em busca de refúgio, o cineasta Nanni Moretti entrevista um torturador na prisão. Indignado com as perguntas certeiras, o torturador objeta: “Só aceitei falar por acreditar que a entrevista seria imparcial”. Uau! O torturador que cobrava imparcialidade. Coisa de filme, mas de ficção. Apesar do absurdo da observação, Moretti não hesitou: “Eu não sou imparcial”. Documentário para mim é reportagem. Em jornalismo, a independência é que conta, não a imparcialidade. Como não tomar parte contra a ditadura? Como não tomar parte contra a corrupção e os golpes?
Como não tomar parte contra o feminicídio, o racismo, o machismo, a homofobia e o trabalho infantil? Como não tomar parte contra privilégios, exclusões, preconceitos e políticas clientelistas? Como não tomar parte contra a intolerância política, social, sexual, racial e religiosa? Como não tomar parte contra o ódio e a indiferença em relação aos mais vulneráveis, esses que vivem e morrem por falta de oportunidade? Como não se posicionar diante da desigualdade e da corrupção que condenam milhões a perecer num eterno presente, sem passado, sem futuro, sem esperanças? Como poderia o negro José do Patrocínio, o maior jornalista brasileiro de todos os tempos, não tomar partido contra a escravidão no Brasil dos anos 1880?
Max Weber, um dos pais da sociologia, especialmente da chamada sociologia compreensiva, aquela que não se reduz ao quantitativismo, em Ciência e Política: duas vocações”, ou “O cientista e o político”, ponderou: “Se vive para a política ou da política”. E concluiu: “A política é um esforço tenaz e enérgico para atravessar grossas vigas de madeira. Tal esforço exige, a um tempo, paixão e um senso de proporções”. Em 1919, Weber entendeu o essencial: viver para a política, por idealismo e interesse pelo bem comum, exige poder viver da política, sem corrupção nem privilégios, ou ela ficará restrita aos ricos, que obviamente cuidarão exclusivamente dos seus interesses. Como, porém, fazer para que a política como vocação e profissão não se transforme em curral de caciques?
Quatro vocações – Talvez só com duas frentes de atuação permanentes: a cidadania e o jornalismo como vocações. Ciência, política, cidadania e jornalismo: as quatro vocações. Só o cidadão em alerta permanente constrói um mundo melhor. O seu aliado deve ser o jornalista vocacionado, profissional, aquele que tem por princípio ouvir todos os lados, ponto e contraponto, argumento e contra-argumento, princípio defendidos incansavelmente por um dos maiores defensores do liberalismo político de todos os tempos, John Stuart Mill, que, no século XIX, execrava a escravidão e a discriminação das mulheres, tendo sido contestado por Sigmund Freud nestes termos: “Não, aqui eu fico com os mais velhos… A posição da mulher não pode ser outra do que é: ser uma namorada adorada na juventude e uma esposa amada na maturidade”. Mill acreditava na força do melhor argumento e na importância dos debates para que o público pudesse julgar os argumentos de cada um. Só não debate quem teme a derrota no campo da racionalidade. A retórica passa. A razão acaba por impor-se.
O jornalismo como vocação só pode ser pluralista. O termo que define o jornalista vocacionado é independência: capacidade de ser livre para frustrar com sua crítica, a qualquer momento, qualquer um dos campos da disputa política. O jornalista de opinião nunca será imparcial, pois opinar significa tomar parte. A sua obrigação, porém, é mostrar todos os elementos em conflito para que o seu público possa tirar conclusões próprias. Albert Camus, em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, dizia que o jornalista precisava ser lúcido, perseverante, irônico e capaz de, em certas situações, dizer não. Em 2019, como sempre, o jornalista de vocação deve ser independente. Os veículos de comunicação fazem jornalismo, não só entretenimento ou ideologia, quando são pluralistas.
Jornalismo é, para usar o conceito do grande Jürgen Habermas, um dos maiores filósofos, nonagenário como com Edgar Morin, esfera pública, espaço público, mesmo em veículos privados, da racionalidade argumentativa, ainda que, no calor dos debates, ela seja envolvida pela passionalidade retórica. Pragmático e utilitarista, o jornalismo como vocação busca a verdade, acredita em verdade, entende que onde está escrito “y” não se pode ler “x” por consequencialismo ideológico. O jornalista vocacionado, independente por definição, nada coloca acima da sua opção pela verdade, nem clube de futebol, nem partido político. Independência rima como honestidade intelectual. O jornalista por vocação está fadado à solidão da sua escolha. Não pertence a tribo alguma.
Enquanto o torturador exige imparcialidade, o jornalista independente cumpre o seu dever ao ouvi-lo. Como sugere Gay Talese, ícone do novo jornalismo, é mais fácil ser justo como quem se concorda. Coragem!
O texto foi publicado na página de Juarez Fonseca no Facebook, editado. Juarez é um velho amigo e colega dos conturbados e gloriosos anos 70 do jornalismo gaúcho.

De Juremir Machado da Silva
Apenas quatro presidentes do país foram identificados com interesses populares. Os dois primeiros, oriundos das classes abastadas, foram sacrificados como traidores da classe. Um foi empurrado ao suicídio, o que só aumentou a sensação de traição, e o outro acabou derrubado e obrigado ao exílio voluntário. Os dois últimos completaram o quadro: um presidente vindo do nada, retirante cuja família migrou para fugir da fome, e uma presidente de classe média, que seria apeada do poder por ter cometido o hediondo crime de adiantar o pagamento de benefícios sociais e de financiamentos ao agronegócio com dinheiro, que seria reembolsado, de bancos públicos.
Chama a atenção na história do presidente mais popular, chamado de analfabeto, que ele governou melhor do que os doutores. Terminou no auge da popularidade, com 80% de aprovação. Nunca os mais pobres viveram tão bem, nunca os não brancos conseguiram tantas vagas nas universidades, nunca os mais vulneráveis ascenderam tanto, ainda que fosse pouco, nunca viajaram tanto de avião, nunca compraram tantos carros e nunca se sentiram tão valorizados. Os seus adversários garantem que isso não passa de uma narrativa. Afirmam que essa ilusória bonança quebrou o país. Num país de secular impunidade, decidiram colocar na cadeia esse governante irresponsável e perigoso.
Acusaram-no de corrupção e o condenaram por ter recebido como propina um apartamento de veraneio onde jamais morou e do qual nunca teve o título de propriedade. Alegaram que o crime, na sua sofisticação extrema, consistia justamente em não ter a escritura para encobrir sua posse. O presente teria sido dado em contrapartida a benefícios em contratos públicos jamais especificados.
Contra a ideia de um complô para tirar do caminho um inimigo ideológico, encontrou-se um argumento irrefutável: falar em complô seria acreditar em teorias da conspiração, que evidentemente não acontecem, ainda mais envolvendo autoridades idôneas da justiça e da política. Mudou-se o conceito de prova para provar o improvável. De repente, a justiça ficou rápida.
Com mais provas, outros ficaram livres e no poder. Se havia pressa em derrubar a presidente para que não causasse mais estragos, não havia a mesma celeridade em retirar o seu sucessor, ainda que em relação a ele as acusações fossem mais graves e robustas. Lembrava uma história inverossímil. Avisado em viagem que a sua casa fora invadida por um ladrão, o proprietário pensou por um segundo e respondeu:
– Deixem que ele fique lá. Assim a casa não fica abandonada. Depois a gente tira ele de lá. Agora só provocaria mais confusão e estrago.
Nesse país de ficção, o ex-presidente encarcerado continuou a liderar as pesquisas de intenção de voto para as eleições do ano em que foi preso. Isso alarmou as autoridades. Libertá-lo tornou-se muito perigoso. Ainda lhe cabiam recursos.
A Constituição Federal, quase sempre obscura, era cristalina quanto a isso: prisão por sentença penal condenatória só depois do trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos.
Mas os doutos haviam decidido que não se deve aplicar a lei literalmente. Sempre se deve interpretá-la, o que significa até reescrevê-la ou produzir dúvida onde não há. Não fosse assim, para que eles serviriam? Que poder teriam?
Uma lei inconstitucional, sancionada pelo presidente tornado presidiário para diminuir a pressão da mídia e dar satisfações ao Ministério Público, impedia candidatura de condenados em segunda instância, ainda que, pendendo recursos, devesse prevalecer a presunção de inocência.
Moral da história: nunca duvide das coincidências.