Veríssimo pergunta: vem aí mais barbárie?

Por Moisés Mendes, editado pelo DCM.

O mundo que teremos depois da pandemia é uma incógnita para o maior cronista brasileiro. Luis Fernando Verissimo diz fazer tudo o que os protocolos determinam para se proteger do coronavírus, enquanto se dedica a arrumar os livros em casa. 

Perto de completar 84 anos (no dia 26 de setembro), o escritor está comemorando 50 anos de crônicas com uma novidade. O livro que marca a data é apenas virtual, por enquanto. 

É o e-book Verissimo Antológico – Meio Século de Crônicas, ou Coisa Parecida, da Objetiva, com 316 textos.

A versão impressa ainda está em estudos, por causa das indefinições provocadas pela pandemia.

Nesta entrevista, o cronista conversou com o Extra Classe por e-mail. Admitiu que ainda teme um golpe e confessou que, se tiver que fugir, vai para a Nova Zelândia.

Extra Classe – A ameaça de golpe foi embora?
Luis Fernando Verissimo – O Planalto está cheio de militares. Na hora do cafezinho, que outro assunto eles podem ter? Acho que a ameaça continua.

EC – Deu pra imaginar o que poderia vir depois de um golpe? Seria como em 64?
Verissimo – O golpe de 64 foi um pouco como a Revolução Francesa. Começou com o Castelo Branco dizendo que a intervenção seria por pouco tempo e todos seriam bonzinhos, e logo veio o Terror. Mas como os atuais generais já ocuparam o poder sem dar um tiro, desta vez talvez seja diferente.

EC – O que pode chegar antes, a vacina ou a queda de Bolsonaro?
Verissimo – O ideal seria uma vacina de ação dupla, contra a volta do coronavírus e contra a reincidência de bolsonaros.

EC – Anunciam vacinas que podem custar até R$ 100. Poderemos ter a guerra da vacina?
Verissimo – O perigo é os americanos comprarem tudo, o que tornaria a questão acadêmica.

EC – E o que vem depois de Bolsonaro?
Verissimo – Depois do Bolsonaro o dilúvio, praga de gafanhotos ou, quem sabe, uma boa surpresa, como o despertar de uma esquerda viável.

EC – Uma guerra civil ainda é uma ameaça? Foi uma hipótese levantada numa crônica.
Verissimo – A guerra civil brasileira começou há anos, só não saiu ainda no Diário Oficial.

EC – Há um debate em torno do que seria uma dúvida acadêmica, se esse governo é ou não fascista. Essas definições ainda importam?
Verissimo – Há filofascistas, protofascistas, fascistas que negam que são fascistas e são os piores, e fascistoides, que ainda podem ser recuperados, pela hipnose ou tratamento com águas.

EC – Uma hipótese a ser sempre considerada nessas circunstâncias: o golpe acontece e descobrimos que a única saída é fugir. Mas fugir pra onde?
Verissimo – Nova Zelândia. Tenho me informado sobre o país, prevendo o pior, e sei que para imigrar você precisa provar que tem uma fonte de renda fixa e que tolera cordeiro cozido até no café da manhã, mas em compensação os militares não se metem em política.

EC – Qual é o personagem mais engraçado desse governo?
Verissimo – Mandaram embora o Weintraub, grande talento cômico, justamente quando ele planejava invadir o Supremo arrebanhando porcos vestindo togas, por puro preconceito. Depois o Olavo reclama e não sabem por quê.

EC – E o mais sem graça?
Verissimo – O Bolsonaro.

EC – Dos nomes que se apresentam como saída pós-Bolsonaro, quem te entusiasma?
Verissimo – Tem gente boa no horizonte. O problema é que o horizonte fica longe. É melhor esperar o pessoal chegar mais perto para ver quem entusiasma.

EC – Sempre diziam que alguém como Bolsonaro nunca seria eleito e que o Internacional nunca seria rebaixado. O que falta acontecer?
Verissimo – Pois é. Também disseram que o Titanic não naufragava, o Terceiro Reich duraria mil anos e o Gabiru nunca faria nada que prestasse.

EC – Há quatro anos, escreveste que faltava o cadáver, o primeiro morto na guerra aberta pela direita.
Verissimo – Se eu disse isso, retiro. Um cadáver já é demais, ainda mais nestes tempos de peste e intolerância.

EC – O que é bom e o que é ruim na quarentena?
Verissimo – O bom é o pretexto para arrumar os livros, o ruim é a impressão de que estaremos fazendo isto pelo resto da vida.

EC – Tem muita gente desafiando a clausura. Qual foi a arte que fizeste na quarentena?
Verissimo – Sou cardíaco, diabético e velho, quase um garoto propaganda para a necessidade de quarentenas. Sigo rigorosamente todas as instruções para driblar o corona.

EC – O mundo ficará pior ou melhor depois da pandemia?
Verissimo – Ficará certamente diferente, só não sei como. Vai unir a humanidade, consciente, pela primeira vez em gerações, da sua fragilidade e da necessidade de uma repaginação moral da espécie, ou vem aí mais barbárie? Não tenho a mínima ideia.

EC – Alguns estão prevendo que todos trabalharão em casa, com exceção dos entregadores de pizza. Isso é bom?
Verissimo – Tenho a impressão que o primeiro impulso da turma depois do cativeiro forçado será cada um correr para um lado e só se reencontrarem quando der saudade, ou nunca mais.

EC – As pessoas ainda se aglomeram na orla do Guaíba ou nas praias da Europa. Isso é só negacionismo ou tem mais alguma coisa?
Verissimo – Se não for um ímpeto de suicídio coletivo, é falta de informação. É impossível saber das mortes pelo vírus, que diminuem, mas nos Estados Unidos e no Brasil ainda estão em nível de massacre, e achar que só vai acontecer com o vizinho.

EC – Escreveste esses dias que estamos proibidos até de ver o sorriso das pessoas. O que veremos quando tirarem as máscaras?
Verissimo – As máscaras são miniburkas, que realçam os mistérios e as promessa dos olhos sem o resto do rosto para atrapalhar. Talvez vire moda quando tudo isto passar. Por enquanto sua função é impedir a propagação de perdigotos, claro.

EC – Há uma exibição nas redes sociais de novos talentos pessoais, de gente que aprendeu a cozinhar ou a tricotar. Qual foi a tua habilidade descoberta na quarentena?
Verissimo – Tenho exercitado muito o dedão para trocar o canal da televisão. Não sei se vale como contribuição à sociedade.

EC – E a sensação de viver sem futebol?
Verissimo – O lado bom da proibição do futebol é que o Inter não perdeu nenhum jogo até agora, este ano.

EC – Está saindo o Verissimo Antológico, em e-book, pela Objetiva, com meio século de crônicas. Qual é a sensação de ver tantos textos de tanto tempo reunidos?
Verissimo – Muitas crônicas eu já tinha esquecido, outras eu gostaria que ficassem esquecidas. Mas a seleção não fui eu que fiz. Sou inocente.

EC – Quais ficariam esquecidas?
Verissimo – Muitas, muitas.

EC – Por que os teus personagens ficaram de fora da antologia?
Verissimo – Foi uma decisão editorial. Não dei nenhum palpite.

EC – O que tu achas que nunca escreveste, o tema que nunca foi abordado?
Verissimo – Certos assuntos a gente evita, até por uma questão de escrúpulo pessoal. Mas aí entra a velha questão: o humor deve ou não ter limites? Uma discussão que vai longe.

EC – E aquele personagem que quase foi criado.
Verissimo – Eu sou do tempo em que a gente escrevia o que queria, na esperança sempre renovada que o próprio jornal não deixaria sair. Mas às vezes se distraiam e deixavam passar. Uma vez censuraram um texto meu sobre o Darwin. A teoria da evolução era proibida, junto com o Brizola e o dom Helder Câmara.

EC – Afinal, aconteceu finalmente a tua adesão à bengala?
Verissimo – Sei não, mas acho que a bengala será uma espécie de rendição.

Por qué no te callas?

Por que no te callas

De Luiz Fernando Veríssimo, genial aos 70 anos, considerando eventuais ligações do papa Francisco, primeiro e único, com a violenta repressão argentina:

“Mas, enfim, os generais da repressão estão sendo responsabilizados e os torturadores estão indo para a cadeia (na Argentina, pelo menos) e o papa Francisco tem acesso direto ao ouvido de Deus, se sentir a necessidade de contrição. E se conseguir que o Hugo Chaves se cale.”

Até acredito que para aguentar a pressão, Deus vai ter que convocar rapidamente o rei Juan Carlos.

Veríssimo: “A primeira pedra”

Artigo de Luiz Fernando Veríssimo

Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo, disse Jesus.

E os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério, e perguntaram a Jesus se ela não deveria ser apedrejada até a morte, como mandava a lei de Moisés. E disse Jesus: aquele entre vós que estiver sem pecado que atire a primeira pedra. E a vida da mulher foi poupada, pois nenhum dos seus acusadores era sem pecado. Assim está na Bíblia, evangelho de São João 8, 1 a 11.

Mas imagine que a Bíblia não tenha contado toda a história. Tudo o que realmente aconteceu naquela manhã, no Monte das Oliveiras. Na versão completa do episódio, um dos fariseus, depois de ouvir a frase de Jesus, pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Eu estou sem pecado!”

— Pera lá — diz Jesus, segurando o seu braço. — Você é um adultero conhecido. Larga a pedra.

— Ah. Pensei que adultério só fosse pecado para as mulheres — diz o fariseu, largando a pedra.

Outro fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, gritando: “Nunca cometi adultério, sou puro como um cordeiro recém-nascido!”

— Falando em cordeiro — diz Jesus, segurando o seu braço também — e aquele rebanho que você foi encarregado de trazer para o templo, mas no caminho desviou dez por cento para o seu próprio rebanho?

— Nunca ficou provado nada! — protesta o fariseu.

— Mas eu sei — diz Jesus. — Larga a pedra.

Um terceiro fariseu pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a adultera, dizendo: “Não só não sou corrupto como sempre combati a corrupção. Fui eu que denunciei o escândalo da propina paga mensalmente a sacerdotes para apoiar a os senhores do templo.”

— Mas foste tu o primeiro a receber propina — diz Jesus, segurando seu braço.

— No meu caso foi para melhor combater a corrupção!

— Larga a pedra.

Um quarto fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Não tenho pecados, nem da carne, nem de cupidez ou ganância!”

— Ah, é? — diz Jesus, segurando o seu braço. — E aquela viúva que exploravas, tirando-lhe todo o dinheiro?

— Mas isto foi há muito tempo, e a mulher já morreu.

— Larga a pedra, vai.

E quando os fariseus se afastam, um discípulo pergunta a Jesus:

— Mestre, que lição podemos tirar deste episódio?

— Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo — diz Jesus.

E, pensando um pouco mais adiante:

E, se possível, a política partidária.

Veríssimo: por via das dúvidas, vote no Baraca.

“Se for eleito, Mitt Romney será o primeiro presidente mórmon dos Estados Unidos, ou, que eu saiba, de qualquer outro país. A igreja Mórmon foi criada no século 19 pelo americano Joseph Smith, que a baseou em contatos pessoais que teve com Deus e com Jesus Cristo e em mandamentos que recebeu das mãos de um anjo chamado Morôni, na forma de tabletes de ouro.” Veja mais do bem humorado artigo de Luiz Fernando Veríssimo, no Estadão.

Diálogos modernos

Mãe, vou casar! 
Jura, meu filho?! Estou tão feliz! Quem é a moça?

Não é moça. Vou casar com um moço. O nome dele é Murilo.

Você falou Murilo… Ou foi meu cérebro que sofreu um pequeno surto psicótico?
 

Eu falei Murilo. Por que, mãe? Tá acontecendo alguma coisa? 
Nada, não… Só minha visão que está um pouco turva. E meu coração, que talvez dê uma parada. No mais, tá tudo ótimo.
 

Se você tiver algum problema em relação a isto, melhor falar logo… 
Problema ? Problema nenhum. Só pensei que algum dia ia ter uma nora… Ou isso.
 

Você vai ter uma nora. Só que uma nora… Meio macho. 
Ou um genro meio fêmea. Resumindo: uma nora quase macho, tendendo a um genro quase fêmea… E quando eu vou conhecer o meu. A minha… O Murilo ?
 

Pode chamar ele de Biscoito. É o apelido. 
Tá ! Biscoito… Já gostei dele… Alguém com esse apelido só pode ser uma pessoa bacana. Quando o Biscoito vem aqui ?

Por quê ? 

Por nada. Só pra eu poder  desacordar seu pai com antecedência.

Você acha que o Papai não vai aceitar?

Claro que vai aceitar! Lógico que vai. Só não sei se ele vai sobreviver… Mas isso também é uma bobagem. Ele morre sabendo que você achou sua cara-metade. E olha que espetáculo: as duas metade com bigode.


Mãe, que besteira … Hoje em dia … Praticamente todos os meus amigos são gays.
 
Só espero que tenha sobrado algum que não seja… Pra poder apresentar pra tua irmã.

A Bel já tá namorando.

A Bel? Namorando ?! Ela não me falou nada… Quem é?

Uma tal de Veruska.

Como ?

Veruska…

Ah!, bom! Que susto! Pensei que você tivesse falado Veruska.

Mãe!…

Tá…, tá…, tudo bem… Se vocês são felizes. Só fico triste porque não vou ter um neto..
.

Por que não? Eu e o Biscoito queremos dois filhos. Eu vou doar os espermatozóides. E a ex-namorada do Biscoito vai doar os óvulos. 
Ex-namorada? O Biscoito tem ex-namorada?
 

Quando ele era hétero… A Veruska. 
Que Veruska ?

Namorada da Bel…

“Peraí”. A ex-namorada do teu atual namorado… E a atual namorada da tua irmã . Que é minha filha também… Que se chama Bel. É isso? Porque eu me perdi um pouco…
 

É isso. Pois é… A Veruska doou os óvulos. E nós vamos alugar um útero. 
De quem?

Da Bel.

Mas . Logo da Bel?! Quer dizer então… Que a Bel vai gerar um filho teu e do Biscoito. Com o teu espermatozóide e com o óvulo da namorada dela, que é a Veruska.
 

Isso. 
Essa criança, de uma certa forma, vai ser tua filha, filha do Biscoito, filha da Veruska e filha da Bel.

Em termos… 

A criança vai ter duas mães : você e o Biscoito. E dois pais: a Veruska e a Bel.
 

Por aí… 
Por outro lado, a Bel…, além de mãe, é tia… Ou tio… Porque é tua irmã.
 

Exato. E ano que vem vamos ter um segundo filho. Aí o Biscoito é que entra com o espermatozóide; que dessa vez vai ser gerado no ventre da Veruska… Com o óvulo da Bel. A gente só vai trocar. 
Só trocar, né? Agora o óvulo vai ser da Bel. E o ventre da Veruska.

Exato!

Agora eu entendi! Agora eu realmente entendi…

Entendeu o quê?

Entendi que é uma espécie de swing dos tempos modernos!

Que swing, mãe?!…

É swing, sim! Uma troca de casais… Com os óvulos e os espermatozóides, uma hora no útero de uma, outra hora no útero de outra…
 

Mas… 
Mas uns tomates! Isso é um bacanal de última geração! E pior… Com incesto no meio…

Bel e a Veruska só vão ajudar na concepção do nosso filho, só isso…
Sei! … E quando elas quiserem ter filhos… 


Nós ajudamos.
 
Quer saber? No final das contas não entendi mais nada. Não entendi quem vai ser mãe de quem, quem vai ser pai de quem, de quem vai ser o útero,o espermatozóide… A única coisa que eu entendi é que…
 

Que…? 
Fazer árvore genealógica daqui pra frente… vai ser foda. 

* ( Luiz Fernando Veríssimo )

Veríssimo, ressacas, valores éticos e eutanásia.

Luiz Fernando Veríssimo, hoje, numa série de tweets, analisando a íntima relação entre valores éticos e o after-day das bebedeiras:

Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas. Você bebia sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. Não sei o que o cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem. Minha experiência maior é com o cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca, pelo menos de ouvir falar. Parece, inclusive, que a ressaca de licor de ovos é um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a eutanásia.