Aos que defendem a volta da ditadura

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Por ELIANE BRUM no EL PAÍS

“Eles eram 400 nas ruas de São Paulo, no primeiro sábado de dezembro, pedindo intervenção militar. Quatrocentos não é pouco. Um é muito.”

Quando escuto brasileiros fazendo manifestação pela volta da ditadura, penso que eles não podem saber o que estão dizendo. Quem sabe, não diz. Mas esse primeiro pensamento é uma mistura de arrogância e de ingenuidade. O mais provável é que uma parte significativa desses homens e mulheres que têm se manifestado nas ruas desde o final das eleições, orgulhosos de sua falta de pudor, peçam a volta dos militares ao poder exatamente porque sabem o que dizem. Mas talvez seja preciso manter não a arrogância, mas a ingenuidade de acreditar que não sabem, porque quem sabe não diria, não poderia dizer. Não seria capaz, não ousaria. É para estes, os que desconhecem o seu dizer, estes, que talvez nem existam, que amplio aqui a voz das crianças torturadas, de várias maneiras, pela ditadura.

Crianças. Torturadas. De várias maneiras.

Botavam meu pai no pau de arara e, para o fazerem falar, simulavam me torturar com uma corda. Eu tinha dois anos”

Como Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Ele tinha dois anos e três meses. Foi considerado terrorista, “Elemento Menor Subversivo”, banido do país por decreto presidencial. Foi preso em 18 de maio de 1970, em São Paulo, com sua mãe, Jovelina Tonello do Nascimento. O pai, Manoel Dias do Nascimento, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização comandada por Carlos Lamarca, havia sido preso horas antes. Ernesto é quem conta:

“Me levaram diversas vezes às sessões de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam me torturar, com uma corda, na sala ao lado, separados apenas por um biombo”.

O menino de dois anos dizia: “Não pode bater no papai. Não pode”.

E batiam.

Libertado quase um mês depois, passou os primeiros anos com pavor de policiais de farda e grupos com mais de quatro pessoas. Entrava em pânico, escondia-se debaixo da cama ou dentro do armário, mordia quem se aproximava e urinava nas calças. Ernesto foi uma criança com pesadelos recorrentes. O mais comum era com um asno, uma corda e uma agulha. “O asno usava um boné militar, a agulha tinha olhos arregalados e uma risada aguda sarcástica e corria atrás de mim, eu apavorado tentava fugir. O asno me cercava, me dava coices ou chutava coisas sobre mim. A corda parecia boazinha, disfarçada de linha se estendia até mim, mas quando eu a segurava ela  machucava minhas mãos e me deixava cair em um abismo.”

Perto do parto, o líquido amniótico descia pelas minhas pernas e as baratas me atacavam em bandos. Eu gritava na cela”

Ernesto é um dos 44 adultos torturados na infância – física e psicologicamente, mas também de outras maneiras – que contam sua história em um livro lançado em novembro pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Infância roubada – crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil é a memória do inominável que precisa ser nomeado para que cada um deles possa viver, para que o crime de Estado não se repita. A maioria dos depoimentos foi registrada em audiências na Comissão da Verdade de São Paulo. Algumas pessoas, que não puderam comparecer ou não conseguiam falar sobre o assunto, foram entrevistadas depois.

O que dizer sobre crianças torturadas pelo Estado? E torturadas ontem, em parâmetros históricos, bem aqui? Os relatos desse livro são alheios aos adjetivos. São silêncios que falam. E soluçam. Como João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, o Joca, antes mesmo de nascer. Ele estava na barriga da mãe, Crimeia, quando ela levou choques elétricos, foi espancada em diversas partes do corpo e agredida a socos no rosto. Enquanto ela era assim brutalizada, os agentes da repressão ameaçavam sequestrar seu bebê tão logo nascesse. Quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levar Crimeia à sala de tortura, o bebê começou a soluçar dentro da barriga. Joca nasceu na prisão e, anos depois, já crescido, quando ouvia o barulho de chaves, voltava a soluçar. A marca da ditadura nele é um soluço. Continue Lendo “Aos que defendem a volta da ditadura”