Um artigo do advogado eduardense Elenildo Lenon Nunes Rocha, no site Consultor Jurídico.
A constituição brasileira jamais esteve tão ameaçada. De enunciados sobre direitos fundamentais irretocáveis a um sistema de governo que se aproxima do absolutismo. O desacredito do congresso nacional; dois processos de impeachment em menos de 30 anos; decisões judiciais contrárias ao texto formal; controle concentrado de constitucionalidade à mercê de influências externas, inclusive a mídia; consentimento de práticas ilegais sob o manto justificante do combate à corrupção e outros crimes de colarinho branco. Estes são exemplos das ameaças mais significativas.
A educação não é mais universal, é exclusividade de alguns privilegiados. O ódio se espalha como vírus, devido a convicções ideológicas e político-partidárias divergentes. O colapso constitucional-democrático é grave e pode levar o texto normativo promulgado em 05 de outubro de 1988 à morte, conforme identificou o professor Cristiano Paixão.
O jurista Calmon de Passos, por sua vez, afirmava que a crise institucional brasileira era esperável, a partir do momento em que o constituinte de 1988 “formalizou no texto constitucional o Estado do Bem-Estar mais avançado do mundo, quando na verdade nunca fôramos nem mesmo arremedo de Estado Social Democrático[1]”.
Para Calmon uma das maneiras de o constituinte conseguir a aprovação do novo ordenamento constitucional, gestado em meio à transição histórica de um regime autoritário para o chamado estado democrático de direito, onde o congresso nacional fragmentado entre direita, esquerda e centro sem qualquer condição de prevalecer individualmente, foi consentir um paradigma político guiado por acordos espúrios traduzido no sistema normativo que está ai, e que atende e justifica o discurso dos conservadores, serve aos reacionários e acalma os revolucionários.
Identificar e compreender as causas do derruimento dos pilares democráticos brasileiros apontando as perspectivas futuras para a retomada do compromisso com o sistema de regras e princípios presentes na Constituição, de modo a restabelecer a ordem constitucional é papel preponderante da produção científica voltada para preservação dos direitos e fortalecimento da democracia.
A Falsa Ideia de Estado do Bem-Estar
Ao menos até o seu vigésimo aniversário eram poucas as discussões acerca dos vícios de origem, forma e aplicabilidade do texto constitucional de 1988. Sendo rara exceção, dois anos depois da entrada em vigor da Carta Magna o Professor Calmon de Passos discorria em suas palestras sobre a “derrapagem” do legislador constituinte ao elaborar o texto da lei maior. O jurista baiano era crítico do texto constitucional e aspirava escrever sobre uma “conspiração insidiosa[2]” arquitetada para sua aprovação.
Texto normativo reflete o nível de poder da classe dominante no momento da elaboração e as forças por detrás de sua normatividade. Durante o regime antidemocrático (1964-1985) o poder era exercido pela força, o instrumento mais adequado naquele período. Na formatação da Constituição libertária, porém, a elite constituinte de 1988 exerceu o poder pela ideologia, alicerçada na promessa de um Estado de Bem-Estar que atendia os interesses de classes antagônicas. A solução encontrada se mostrou mais produtiva.
Os reflexos do vacilo legislativo dos constituintes de 1988 são bem atuais: crise institucional universalizada; congresso nacional desacreditado; vontade do povo anulada em dois processos de impeachment; o poder judiciário, não menos desacreditado, mas utilizando-se de uma espécie de paternalismo constitucional como um paladino supremo das soluções dos conflitos e, enfim, a “democracia em vertigem”.
Se antes não havia exercício de poder político, hoje, esse poder escapa ao controle social do povo. As atuais manifestações não possuem causa, apenas refletem o paradoxo ideológico acentuado pela polarização político-partidária. Existe um irrealismo constitucionalizado da realidade, calcado na ingênua crença de que a judicialização da convivência humana é a solução para os problemas existenciais e naturais de toda sociedade. A dormência coletiva é fruto de uma constituição cidadã generosa em enunciar direitos fundamentais e demasiadamente esmaecida e astuta ao assegurar esses direitos.
Segundo Calmon, enquanto a Europa e os Estados Unidos davam início ao “consenso de Washington” e sepultavam o Estado do bem-estar, levianamente, o constituinte de 1988 “formalizou no texto constitucional o Estado do Bem-Estar mais avançado do mundo, quando na verdade nunca fôramos nem mesmo arremedo de Estado Social Democrático”.[3]
Para o jurista baiano, a crise do constitucionalismo brasileiro era esperável. Hoje, percebemos a contemporaneidade de seu pensamento.
O dilema da frágil democracia brasileira e a crise constitucional
Em artigo dedicado aos 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, compartilhado por pesquisadores da Universidade de Brasília, o professor Cristiano Paixão analisa a crise constitucional e conclui que ela se tornou mais evidente em 2016 a partir do impeachment da então presidente da República Dilma Rousseff, além de possui uma característica distinta: “é uma crise desconstituinte”. Das várias possibilidades, aponta dois possíveis desfechos para o problema. Primeiramente é o gradativo esvaziamento do texto constitucional que conduz a um estado de obsolescência. Pragmático, o pesquisador ainda prevê que se persistirem os ataques dos “movimentos desconstituintes” ao seu núcleo, será impossível restaurar minimamente o padrão de estabilidade institucional, o que pode levar a morte do texto promulgado em 1988.
O segundo desfecho é positivo, no sentido de que “será necessário contrapor uma resistência aos impulsos desconstituintes, sob a forma de um movimento. Um movimento reconstituinte”, “que antes de tudo deve retomar o compromisso com o sistema de regras e princípios presente na Constituição”.
Essas leituras da crise pelo professor Cristiano Paixão, de certo modo, demonstram a contemporaneidade do pensamento de Calmon de Passos,que numa perspectiva futurista já alertava sobre a crise no poder judiciário afirmando que “a ameaça à cidadania vem do poder não submetidos a efetivos controles sociais e isso não diz respeito apenas ao Executivo, à administração pública, mas a todas as funções do Estado e aos que as desempenham, incluídos o legislador e o julgador”.
Calmon afirmava que o processo legislativo constituinte de 1988 gerou a desmobilização da luta política ao instituir como núcleo da Constituição os direitos e garantias fundamentais. Em contraponto, o professor Cristiano Paixão não vê vício de origem no desenho constitucional que justifique uma redefinição do atual texto ou a sua substituição por meio de nova constituinte.
Segundo Paixão, o conceito de crise perdeu muito de seu componente de excepcionalidade[4]. A gradativa normalização do conceito tem duas consequências: uma espécie de banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito. A normalização da excepcionalidade é tão lesiva quanto a própria crise, porquanto permeia o campo da racionalidade. Não é racional nos acostumarmos com tiroteio diário no Rio de Janeiro, tampouco com ilegalidades institucionalizadas. Não é racional nos acostumarmos com a passividade letárgica do povo, mas é o que estamos vendo. Compreender a dimensão da crise, as perspectivas para o futuro e apontar possíveis caminhos, é papel da preponderante da comunidade acadêmica.
Conclusão
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